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Conjuntura boliviana na pandemia

Por Ana Lúcia de Lacerda*





A pandemia gerada pelo novo coronavírus surpreendeu a muitos países da América do Sul, que já estavam imersos em crises políticas e econômicas antes dela. A Bolívia é um desses casos. A conjunção da crise política com a pandemia intensifica os efeitos e agrava as resoluções que poderiam surtir êxito para o seu combate, uma vez que a pandemia passa a servir como instrumento político no contexto da instabilidade que lhe precedia.


O último governo de Evo Morales, do partido Movimiento al Socialismo (MAS), vinha sofrendo desgaste. A resposta negativa da população ao referendo, realizado em 2016, referente a tentativa de mudança constitucional que permitiria seu quarto mandato, já demonstrava o enfraquecimento político do líder indígena. Apesar do retorno desfavorável do povo, Morales se candidata, por meio da liberação do Tribunal Constitucional, e ganha em primeiro turno as eleições realizadas em outubro de 2019. Os questionamentos relacionados a apuração dos votos começaram no mesmo dia com o Supremo Tribunal Eleitoral (STE) suspendendo a contagem de votos das urnas com 83%. Até aquele momento, haveria segundo turno entre Morales e o ex-presidente Carlos Mesa. No dia seguinte, no entanto, o STE já havia contabilizado 95%, indicando a vitória governista.


As suspeitas levaram a oposição a apontar fralde, culminando em manifestações de rua e no apelo da Organizações dos Estados Americanos (OEA) e da União Europeia para a efetuação do segundo turno. Evo Morales, contudo, insistia na vitória, e em resposta pediu para seus apoiadores irem às ruas a “defender a democracia” e evitar o “golpe de Estado”. Devido à fortes pressões internas e externas, Morales concorda em realizar novas eleições. Entretanto, a ação política não obteve o resultado esperado, pois as Forças Armadas, apoiada pelas policiais locais, declararam que um novo pleito não resolveria a crise política, pressionando a Morales a renunciar ao cargo em 10 de novembro de 2019. O líder indígena, junto a outros líderes do MAS no Legislativo, foi forçado a renunciar e, desde então, o país vem sendo governado por Jeanine Áñez, segunda vice-presidente do Senado à época, cuja governabilidade ainda é afetada pela instabilidade política.


Desde a saída de Evo Morales da presidência, a população vem fazendo forte pressão para realização de novas eleições, que ocorreriam em maio deste ano.

Assim que a situação sanitária começou a se agravar, a presidente interina Áñez decretou quarentena nacional, em 21 de março, declarando que apenas os (as) trabalhadores (as) de serviços essenciais poderiam utilizar transportes públicos e privados. O governo interino teria oferecido uma complementação de renda às pessoas mais vulneráveis, injetando 500 milhões de dólares na economia e flexibilizando juros e multas. Todavia, os decretos de quarentena foram um tanto quanto controversos e arbitrários. Eles previam penas às pessoas que desobedecessem às ordens do governo e divulgassem informações falsas sobre o tratamento, indiciando-as por delito à saúde público. Surgem então denúncias de perseguição à oposição e de militarização do processo, por meio da utilização das Forças Armadas e de prisões arbitrárias. Após 100 dias de quarentena o país registrou 30.000 casos e mais de 1.200 mortos, e a situação pandêmica saiu do controle governamental. Não foram registradas políticas direcionadas especificamente à saúde pública e casos de corrupção começaram a surgir, deslegitimando assim os decretos instituídos.


A crise sanitária aprofundou ainda mais a instabilidade política boliviana. Desde a saída de Evo Morales da presidência, a população vem fazendo forte pressão para realização de novas eleições, que ocorreriam em maio deste ano. Entretanto, com a situação pandêmica o pleito foi adiado para o período de julho – setembro. Em 21 de junho a presidente interina promulgou a Lei 691 adiando mais uma vez as eleições e convocando-as para 6 de setembro.


Em pronunciamento, Áñez disse que teria sido forçada a tomar tal atitude porque os candidatos Carlos Mesa e Luís Catacora pressionaram-na junto ao Congresso, e por isso eles deveriam assumir suas responsabilidades exigindo eleições em meio à pandemia. Segundo o jornal Página Siete, Mesa argumentou que Áñez era inconsistente. Ele apontou que, ao promulgar uma lei, a chefe de Estado assumiria total incumbência pelo que decretou. Assim, com seu discurso, ela estaria tentando fugir do seu compromisso como presidente da República. Ainda de acordo com este canal de mídia, o MAS, também em resposta, expôs que o Estado deveria garantir as eleições. Por isso, a responsabilidade seria coletiva, uma vez que a ordem democrática deveria ser preservada juntamente com a segurança sanitária.


Contudo, no início de julho o governo interino propôs adiar as eleições por mais um mês, mesmo que o Senado e a Câmara de Deputados já tivessem aprovado sua realização em setembro. Essa decisão foi endossada mais tarde pelo Supremo Tribunal Eleitoral boliviano, que postergou as eleições para 18 de outubro e gerou ainda mais instabilidade política, visto que a insatisfação de parte da população fez as ruas ficarem tomadas por manifestantes. A presidente Jeanine Áñez defendeu o adiamento dizendo ser um imperativo para a saúde pública, justificando que setembro seria o pico da curva da pandemia causada pela COVID-19. Todavia, em termos políticos, ela seria a maior beneficiada, já que está em uma situação declinante de votos devido às políticas mal sucedidas e aos escândalos de corrupção. Adiar as eleições poderia dar fôlego para uma possível recuperação. 


Em contrapartida, o candidato do Movimiento al Socialismo aparece liderando as pesquisas. Segundo o Centro Estratégico Latino-americano de Geopolítica (CELAG), apesar das prisões, das renúncias e do exílio, o partido tem grandes chances de vencer em primeiro turno. Segundo o MAS, na oposição, adiar as eleições é uma estratégia para Jeanine Áñez e seus aliados se manterem no poder e enfraquecê-los. Após o adiamento das eleições os apoiadores do partido – setores indígenas, cocaleiros e mineiros - fizeram greves, manifestações e bloqueios nas estradas como forma de aumentar a pressão ao governo. Em decorrência disso, no dia 9 de agosto Fernando Camacho, um dos principais opositores do ex-presidente Evo Morales, convocou a população, através do Twitter, para ir até os bloqueios e desobstruir as estradas, anunciando que os cívicos assumiriam a responsabilidade pela ausência do Estado, mas nada foi feito.


Em 11 de agosto as organizações Pacto de Unidade e Central Obrera Boliviana (COB) propuseram formalmente ao Órgão Eleitoral e à Assembleia Legislativa que as eleições fossem realizadas no dia 11 de outubro e que essa data fosse garantida por lei. Contudo, o ex-presidente Morales declarou que não faria sentido lutar por uma semana, e por isso não avançariam com os bloqueios e manifestações desde que a data fosse assegurada. Dessa forma, após consenso, a data para as eleições bolivianas foi mantida, até este momento, para 18 de outubro, assim suspendendo as medidas de pressão contra o governo e desmobilizando os bloqueios.


O futuro boliviano é incerto, uma vez que as tensões entre os governistas e opositores vêm aumentando dia após dia. A direita está fragmentada: o bloco político que derrubou o ex-presidente Morales se desmontou e se dividiu em quatro candidatos distintos: Carlos Mesa, da Comunidad Ciudadana; Jeanine Áñez, do Juntos; Luiz Fernando Camacho, do Creemos; e Jorge Tuto Quiroga, do Libre. Luís Arce Catacora e David Choquehuanca são os candidatos do MAS e, em início de agosto, venciam por 10% o primeiro colocado da direita, Carlos Mesa.


No entanto, o ex-presidente Evo Morales, que desde sua saída da presidência está exilado – hoje na Argentina -, vem sendo alvo de novas acusações. Com os protestos e os bloqueios, a direita o acusa de incentivar à violência, ligando-o ao tráfico de drogas. Mais recentemente foi acusado de estupro. Segundo as declarações do Ministério da Justiça da Bolívia, Morales manteria uma relação amorosa há cinco anos com uma mulher que, quando conheceu, tinha 16 anos. A jovem confirmou à Força Especial de Combate ao Crime (FELCC) seu relacionamento com o líder indígena, mas disse que se tornaram namorados este ano, quando já era adulta. Os opositores do MAS vêm desde então pressionando a chapa do partido a desistir da candidatura, já que Arce e Coquehuanca sabiam de tal fato e por isso seriam cúmplices do crime.


Mesmo com o MAS à frente nas pesquisas, o resultado eleitoral é incerto. As acusações contra Evo são graves e podem, em última instância, influenciar nas urnas. A direita não desistirá das investidas contra o MAS, assim como o MAS não desistirá das mobilizações e do enfrentamento. Nesse cenário de instabilidade e confrontos políticos os problemas pandêmicos se tornam secundários, e muitas vezes são instrumentalizados para ações políticas de ambos os lados.


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* Ana Lúcia de Lacerda é mestranda em Relações Internacionais pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro e graduada pela Universidade Católica de Petrópolis (UCP).


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