Por Lorena Granja Hernández
O Mercado Comum do Sul tem quase trinta anos e, naturalmente, tem mudado muito ao longo dessa trajetória. Poderia se dizer que uma das razões pelas quais continua existindo tem a ver com sua alta capacidade de mudança, adequação ou resiliência aos devires da política doméstica de seus países membros.
Pensado em um contexto de abertura econômica no qual havia um só caminho para a integração regional (o europeu), o Mercosul adotou em Assunção o nome e o objetivo de sua existência, a conformação de um mercado comum. Mas isso rapidamente mudou, ainda nos anos 1990, quando se evidenciaram os principais empecilhos para a desgravação tarifária e a adoção de políticas alfandegárias e de comércio comuns que tal objetivo demandava.
O Mercosul dos 90 se conformou e beneficiou da relativa convergência ideológica entre os governos dos países membros (ainda que com diferenças entre os maiores, Argentina e Brasil). Tal convergência procurava uma integração neoliberal, o objetivo era a abertura comercial para o mundo, se inserindo assim nos mercados globais e tentando gerar mercados de escala regional para os produtos não exportáveis extra-regionalmente. Embora tal objetivo fosse parcialmente alcançado, o Mercosul conseguia, com isso, uma relativa institucionalização interna que, somada ao processo de regionalização produtiva, sentava as bases para a gestão de uma incipiente governança regional.
Na virada do século, a convergência ideológica neoliberal entre os quatro países membros do bloco já não era tão forte. Na sequência, aparece uma tendência à esquerda que se configura regionalmente nos governos a partir de 2003 (quando assume Lula em Brasil e Kirchner na Argentina) e se reforça até 2008 (quando assume Lugo no Paraguai); tal convergência alcança seu maior potencial nesses anos, começa a decrescer no 2013 e encontra seu limite no 2015 (quando assume Macri na Argentina, mudando o signo ideológico do governo). Durante esses anos, todos os governos dos países membros tem à frente um partido com liderança progressista; tal convergência ideológica tem resultados na construção de governança regional. Com o consenso de Buenos Aires, o Mercosul começa um processo de mudança que, sem deixar de procurar uma integração de tipo econômico-comercial, pretende modificar os rumos do bloco e os objetivos desta, ampliando sua incidência a outras agendas, processos e atores.
"O processo de fortalecimento institucional se manifesta ao longo de toda trajetória do Mercosul, mas se multiplica durante o período de convergência ideológica progressista."
Nesse momento, se configura um processo de criação e fortalecimento institucional que pode ser traduzido na quantidade de assuntos que são tratados pelo bloco nas suas instâncias formais, na quantidade de reuniões e grupos ad hoc que são criados por esses anos para trabalhar assuntos específicos dentro do âmbito regional, e até na criação de instituições e órgãos permanentes com mandato institucional e capacidades. Esse processo de fortalecimento institucional se manifesta ao longo de toda trajetória do Mercosul, mas se multiplica durante o período de convergência ideológica progressista, como fica evidenciado na seguinte imagem:
Fonte: elaboração própria em base a codificação de decisões do Mercosul disponíveis em www.mercosul.int
Já no terceiro período, a partir de 2015, vemos uma nova configuração ideológica regional. Até o impeachment da presidenta Rousseff no Brasil há um breve período de divergência ideológica, que se acaba no governo Temer, quando é conformada uma nova convergência, neste caso, “conservadora” ou de “restauração neoliberal” (apesar de que Uruguai ainda tem um governo progressista, nesses anos, houve consensos em boa parte das negociações). Tal convergência é brevíssima, porque a partir de 2019, há divergência ideológica entre os governos dos principais sócios, Argentina e Brasil.
Nestes últimos anos, o Mercosul tem passado por um processo de retração das suas capacidades para gestionar a governança regional. Embora há muitos aspectos que são tratados no nível regional, e que podem estar sendo resilientes, no último período vemos uma perda de dinamismo nas agendas, além de certo tipo de estrangulamento orçamental, sobre todo nas instituições criadas no período anterior. Apesar disso, há agendas que não perderam dinamismo nunca dentro do bloco, a que tem a ver diretamente com a integração comercial, e a inserção nos mercados internacionais.
A continuação alguns dados que ilustram tais argumentos, todos eles foram construídos com o software Nvivo a partir da análise de conteúdo e codificação por categorias na base de dados do Mercosul do Lerpe e tem como fontes principais as decisões do Mercosul (www.mercosul.int).
No primeiro período, 1991-2001, houve protagonismo da integração econômica nas agendas do Mercosul. Embora as decisões administrativas e de criação, fortalecimento e gestão institucional sejam também muito presentes no CMC. No segundo período, 2002-2014, vemos um aumento exponencial da quantidade de assuntos tratados nas decisões, assim como também dos consensos alcançados para tomá-las. No período, houve uma forte preocupação pela integração de políticas (integração ampliada a outros assuntos não econômicos, como por exemplo, culturais, educacionais, direitos humanos, infraestrutura, etc.) além da integração econômico-comercial.
Mas o que chama a atenção é importância da quantidade de decisões administrativas (que denotam ao próprio funcionamento do bloco); das decisões que criam ou fortalecem organismos de gestão de diferentes assuntos; e das decisões que gestionam ou regulamentam tais órgãos, como vimos em detalhe na imagem da evolução da criação institucional. No terceiro período, 2015-2019, embora seja muito menor na quantidade de anos, vemos que há uma certa retração aos níveis da década dos 90, tanto na quantidade de decisões tomadas, quanto na importância dada as questões institucionais, e a retomada do protagonismo da agenda de integração comercial em detrimento da integração de políticas públicas de maior abrangência.
A gestão institucional, por sua vez, é representada na imagem acima, que nos mostra a evolução anual da quantidade de referências codificadas para criar, modificar ou suprimir organismos internos. Para regulamentar ou gestionar eles, assim como para lançar planos de ação conjunta sobre determinadas áreas (como por exemplo, a cartilha da cidadania ou os fundos de promoção). Nos últimos anos, foram evidenciadas restrições também nesse sentido.
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* Lorena Granja Hernández é doutora em Relações Internacionais pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
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